Súmulas também precisam ser interpretadas

Não são apenas a Constituição Federal e as leis do país que precisam de interpretação por aqueles que devem obedecê-las e aplicá-las.

As súmulas de tribunais, sejam vinculantes ou simples, também necessitam de interpretação porque são, no fim das contas, textos.

Recordo-me das discussões para a edição de súmula vinculante do STF, quando um dos ministros asseverou que a corte precisava editar súmula com linguagem a mais clara possível, para que não pudesse sofrer interpretação. Deveria ser imune à interpretação: aplicação pura e simples ao caso concreto.

Como súmula é, na verdade, enunciado a respeito de tema jurídico, que exterioriza o entendimento reiterado da jurisprudência de determinado tribunal, sempre é publicada como se fora uma tese, vale dizer, um texto que denota expressão in abstracto do tribunal sobre o referido tema jurídico.

A CF e as leis são, igualmente, textos abstratos feitos para regular a vida em sociedade: a CF como contrato social, pacto existente entre o Estado e seus administrados (pessoas físicas e jurídicas); as leis como regramento das relações entre particulares (v.g. Código Civil) ou entre estes e o poder público.

O conteúdo da CF e das leis é composto de textos normativos e, quando aplicado a determinada situação concreta como, por exemplo, quando o juiz profere sentença judicial regulando situação entre as partes, torna-se norma. O texto normativo (CF e leis) é abstrato; a norma (e.g. sentença judicial) é concreta.

Nesse contexto, pode-se dizer que a súmula é, também, texto normativo em sentido lato, que pode transformar-se em norma jurídica quando aplicada para resolver determinada situação concreta.

Sendo texto, é imperioso que sofra processo de interpretação, como ocorre com todo texto normativo no Direito brasileiro (CF e leis).

Por isso é que a súmula como texto normativo, pode sofrer controle de constitucionalidade pelo Poder Judiciário. O juiz do caso concreto pode, portanto, deixar de aplicar súmula, vinculante ou não, caso a entenda inconstitucional (controle concreto da constitucionalidade da lei ou de texto normativo). Poderá fazer o mesmo se a súmula for ilegal: interpreta-a e não a aplica ao caso por entendê-la ilegal.

Outra forma de o juiz deixar de aplicar súmula, vinculante ou não, ocorre quando diz que a hipótese que ele, juiz, examina não se amolda ao texto da súmula (distinguishing) ou que o texto abstrato da súmula está ultrapassado por texto constitucional ou legal superveniente ou por modificação superveniente da jurisprudência (overruling) (CPC 489 § 1º VI).

Permitimo-nos interpretar alguns desses textos normativos, emitindo nossa opinião sobre o que os tribunais superiores vêm realizando quando editam esses verbetes que integram a súmula de sua jurisprudência predominante.

—  STF-V 3: “Nos processos perante o Tribunal de Contas da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão”. A garantia constitucional do contraditório e ampla defesa (CF 5º LV) é dada nos processos administrativos e judiciais, de modo que o processo administrativo do TCU está inserido dentro da garantia constitucional. O verbete dessa súmula é inconstitucional, na medida em que restringe onde a Constituição não o fez. Por que se garantiria o contraditório nos processos administrativos do TCU, salvo os que versem sobre a legalidade da concessão inicial de aposentadoria, reforma ou pensão? Garantia constitucional se interpreta ad ampliandae não ad restringenda, como fez inconstitucionalmente o STF ao editar o STF-V 3.

— STF-V 5: “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”. Súmula inconstitucional por ofender a garantia constitucional da ampla defesa. Ao dar-se oportunidade do réu, no processo administrativo disciplinar, de exercer a sua própria defesa, o julgador administrativo estará dando a ele “defesa”, mas não “ampla defesa”, como manda a Constituição. Somente haverá ampla defesa se o réu tiver defesa técnica, isto é, a realizada por profissional habilitado (advogado). O funcionário público leigo não sabe quando uma portaria que inicia o processo administrativo disciplinar é apta ou inepta, se ocorreu ou não a prescrição da pretensão punitiva administrativa do Estado etc. Só o advogado é que tem habilitação para exercer a defesa técnica do réu no processo administrativo disciplinar. Nesse ponto está correta a súmula do STJ, que garante a presença do advogado nesses processos disciplinares. STJ 343: “É obrigatória a presença de advogado em todas as fases do processo administrativo disciplinar”.

— STJ 381: “Nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas”. É necessário que seja reformulada a súmula, para que se amolde à lei brasileira. No caput do CDC 51 está determinado o regime jurídico das cláusulas abusivas no contrato de consumo: nulidade pleno iure. Como as cláusulas abusivas são nulas, devem ser examinadas de ofício pelo juiz e pronunciada a nulidade igualmente ex officio, sem necessidade de provocação da parte ou interessado. De outra parte, o CC 2035. parágrafo único, reconhece como de ordem pública as matérias relativas às cláusulas gerais como, por exemplo, as do CC 421 e 422, que igualmente prescindem de provocação da parte para serem examinadas pelo juiz. Do jeito como está redigida a súmula, o juiz está impedido de exercer o seu ofício: ele deve, obrigatoriamente, pronunciar de ofício a nulidade absoluta — regime jurídico das cláusulas abusivas; mas o STJ 381 o impede de fazê-lo. Caso o juiz pronuncie de ofício a abusividade da cláusula estará exercendo nada mais nada menos do que o múnus público que lhe é determinado pela lei. A súmula, entretanto, o impede de cumprir… a lei! Propusemos, em sede doutrinária, reformulação da redação da súmula, para contemplar a garantia constitucional do contraditório (CF 5º LV), consubstanciada na proibição da decisão surpresa (CPC 10), bem como para cumprir a determinação do CDC 51 de que o juiz examine, obrigatoriamente, as cláusulas abusivas no contrato de consumo (e não apenas nos contrários bancários) e, quando for o caso, pronuncie ex officio sua nulidade que, ex vi legis, é absoluta. Este o texto sugerido: “O juiz deve examinar e pronunciar de ofício a nulidade de cláusula abusiva no contrato de consumo, desde que tenha sido dada oportunidade para as partes manifestarem-se a respeito do tema”. Há muitos anos, o STJ instaurou comissão para rever essa súmula, que é ilegal, comissão essa presidida pelo ministro Paulo de Tarso Sanseverino. A comunidade jurídica aguarda ansiosamente pela reformulação da súmula ou mesmo pela sua revogação, para que seja restaurada a legalidade.

— STJ 623: “As obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo admissível cobrá-las do proprietário ou possuidor atual e/ou dos anteriores, à escolha do credor”. Nem todas as obrigações ambientais têm caráter propter rem, mas apenas aquelas que dizem direta e exclusivamente à coisa. Caso a obrigação ambiental tenha exclusiva natureza propter rem, a parte passiva legítima é o atual proprietário ou possuidor, justamente porque a obrigação adere à coisa. O anterior proprietário ou possuidor não tem mais nenhum vínculo com a coisa, de sorte que o credor da obrigação ambiental propter rem somente pode cobrar seu cumprimento do atual proprietário e/ou possuidor. Se o atual proprietário e/ou possuidor vier a cumprir a obrigação (pagar, fazer, não fazer) pode, em tese, vir a ter direito de regresso contra o anterior proprietário e/ou possuidor. O credor não, justamente por tratar-se de obrigação propter rem, de caráter real e não pessoal. A causa da obrigação ambiental é a coisa e não a pessoa. A “escolha”, pelo credor, da parte passiva da obrigação ambiental propter rem, não tem autorização no sistema legal brasileiro, salvo se houver causa para a invocação de solidariedade passiva legal ou contratual (CC 265).

— STJ 637: “O ente público detém legitimidade e interesse para intervir, incidentalmente, na ação possessória entre particulares, podendo deduzir qualquer matéria defensiva, inclusive, se for o caso, o domínio”. A súmula não indica em que qualidade, autorizada pela lei, interviria o ente público. Como assistente (CPC 119)? Auxiliando uma das partes a vencer? Teria interesse jurídico para tanto? Como opoente (CPC 682), objetivando excluir a pretensão possessória (ou dominial) de autor e réu? Só o caso concreto, analisadas todas as suas circunstâncias fáticas e jurídicas, pode determinar se o ente público tem “legitimidade” para intervir em processo alheio. A autorização genérica dada pela súmula não encontra respaldo na lei.

STJ 641: A portaria de instauração do processo administrativo disciplinar prescinde da exposição detalhada dos fatos a serem apurados”. Somente será apta a portaria de instauração de processo administrativo disciplinar se contiver a descrição completa do fato, para que o réu possa exercer correta — e amplamente o contraditório (CF 5º LV). Não há necessidade de a descrição do fato ser “detalhada”, mas é preciso que seja completa com todos os elementos necessários para o exame da tipificação da conduta e o exercício do contraditório e da ampla defesa. A descrição dos fatos na portaria do processo administrativo disciplinar assemelha-se à descrição do fato na denúncia do processo penal (CPP 41: “A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identifica-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol de testemunhas”). A portaria de instauração do processo administrativo disciplinar é a petição inicial do referido processo. A portaria, portanto, deve conter a descrição do fato que configura falta administrativa, “com todas as suas circunstâncias”, bem como “a classificação da conduta” (tipificação administrativa) e a pena a que o processado estará sujeito, se procedente a pretensão da Administração Pública. Sem isso a portaria será inepta e o processo administrativo deverá ser extinto sem resolução do mérito. A presença de advogado em todos os atos do processo administrativo é indispensável, sob pena de nulidade. Nesse sentido correto o STJ 343 e incorreto, por inconstitucional, o STF-V 5, como já apontado acima.

Queremos com isso dizer aos leitores que todo texto precisa ser interpretado. Não existe aplicação automática de texto da Constituição, da lei ou de súmula (vinculante ou não) que prescinda de interpretação para que o texto possa fazer-se valer.

Daí por que entendemos que o objetivo e a boa vontade do legislador de 2015, de criar sistema de decisões vinculantes como remédio para os males da litigiosidade gigante de que padece o Brasil, pode não alcançar seu objetivo, dado que as decisões vinculantes — para quem as entenda como constitucionais, que não é o nosso caso — também são texto e, portanto, carecem de interpretação para serem aplicados a casos concretos. Caso se tenha pensado em aplicação automática, houve certamente um ledo engano.

Posts Relacionados