50 anos do AI-5, o ato que derrubou o Estado de Direito

Pelo rádio, na noite de 13 de dezembro de 1968, os brasileiros tiveram conhecimento, pela voz do locutor Alberto Curi, que entraria em vigor o período mais duro da ditadura. O então ministro da Justiça, Luís Antônio Gama e Silva, o Gaminha, foi o responsável por avisar ao Brasil o que estava em jogo com a entrada em vigor do Ato Institucional nº 5, do qual foi o redator.

O famigerado AI-5 foi o responsável pelo fim do Estado de Direito no Brasil e inaugurou o período mais duro da ditadura militar que iniciara quatro anos e meio antes e duraria por mais 17, até 1985. Nesta quinta-feira (13/12), o AI-5 completa 50 anos.

Foi por meio dele que se institucionalizou a censura, o presidente da República ganhou poderes para cassar mandatos de parlamentares, foram suspensos direitos políticos e, talvez sua faceta mais sensível, foi proibida a concessão de Habeas Corpus a acusados de crime contra a segurança nacional, transferindo à Justiça Militar a competência para julgar crimes políticos. Foi, portanto, a institucionalização da ditadura, até então autoproclamada uma tomada de poder necessária para que o país não caísse nas mãos de comunistas.

Com 12 artigos, o ato institucional aprofundou os poderes do presidente da República, tornando-o superior aos demais poderes. O AI-5 permitiu cassações políticas, estabelecendo que o presidente da República, sem as limitações previstas na Constituição, poderia suspender os direitos políticos de qualquer cidadão pelo prazo de dez anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais, por exemplo.

Era, na visão de especialistas ouvidos pela ConJur, um conjunto de normas discricionárias que o regime viu necessidade de implementar em um ano com fortes manifestações contrárias, especialmente de estudantes, em uma medida oficial para dotá-las de valor legal e enquadrá-las num suposto arcabouço jurídico.

“O AI-5 pôs abaixo o Estado de Direito. Instituiu o regime de exceção. Era a negativa de todos os direitos. Ele foi a derrubada, a demolição de toda a estrutura da Justiça”, afirma o ex-secretário de Direitos Humanos Paulo Sérgio Pinheiro, que foi membro da Comissão Nacional da Verdade responsável por investigar violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988 no Brasil por agentes do Estado.

Cinquenta anos depois, é consenso entre estudiosos que o AI-5 foi um marco. Ele deu nome, por exemplo, ao segundo volume da série sobre a ditadura militar no Brasil, escrito pelo jornalista Elio Gaspari: A Ditadura Escancarada. O ato também suspendia as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade.

A suspensão do Habeas Corpus, outra previsão do ato, foi um dos elementos que deu plenitude à ditadura. Perseguidos políticos e advogados que enfrentavam o regime usavam do instituto como forma de resistência.

“O HC é uma criação do direito jurisprudencial inglês, mas que foi sempre associado às liberdades individuais. É o último recurso contra o arbítrio. Suspendê-lo foi uma das maiores arbitrariedades contra o direito do cidadão recorrer contra o Estado”, afirma o professor da Faculdade de Direito da UnB e coordenador da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da mesma instituição, Cristiano Paixão.

Paulo Sérgio Pinheiro também ressalta que foi a partir daquele momento,que se fortaleceu a luta armada entre militantes de esquerda. “A legislação do AI-5 corresponde a uma prática de exceção por parte das Forças Armadas, que se tornam um aparelho de repressão. Isso torna muito difícil a resistência da oposição por via institucional, por meio do Judiciário como tentativa de garantia de direitos. Acabou ali a independência do Judiciário”, pontuou o ex-ministro.

Para além disso, as ações do presidente da República não eram mais passíveis de recurso legal. O AI-5 excluía de apreciação judicial todos os atos alcançados por ele e por seus atos complementares, bem como os respectivos efeitos.

“O país não tivera, em toda a sua vida republicana, um conjunto de medidas que concentrasse tanto poder discricionário nas mãos de um chefe de Estado”, diz o relatório da CNV sobre o AI-5. Logo na sequência os outros poderes foram atacados com base no ato.

O Congresso sofreu o imediato expurgo de parlamentares. Houve dezenas de cassações na Câmara baseadas no AI-5. Começando com Márcio Moreira Alves e Hermano Alves, 51 deputados do MDB e 37 da Arena foram privados de seus mandatos. No Senado, houve a acusação de oito senadores. Assembleias estaduais foram fechadas, como as do Rio de Janeiro e de São Paulo.

O Judiciário não tardou a ser atingido. Em janeiro de 1969, três ministros do Supremo Tribunal Federal, Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva, foram aposentados compulsoriamente. Os ministros Antonio Gonçalves de Oliveira, então presidente do STF, e Lavayette de Andrada se demitiram em solidariedade. E o governo militar aproveitou para reduzir a quantidade de cadeiras no Supremo de 16 para 11, ampliando seu domínio sobre o tribunal: apenas o ministro Luís Gallotti, o decano, não era indicado pelos militares.

Cristiano Paixão ressalta que, no período, o Supremo não teve uma postura totalmente submissa, mas também não resistiu ao regime. “Vale destaque a postura de muitos advogados que desafiaram o regime, se arriscaram na defesa de perseguidos políticos e da resistência”, disse, citando Sigmaringa Seixas, Modesto da Silveira, Sobral Pinto e Wilson Mirza como alguns deles. Eles permitiram, inclusive, a construção da memória pós-redemocratização ao copiar processos do Superior Tribunal Militar, por exemplo.

Regime de exceção

Da perspectiva do Direito, Paixão afirma que o Brasil teve uma peculiaridade. “Os atos institucionais foram usados em todo o regime para regular exceções, como medidas que não eram passíveis de contenção por parte do Congresso. Ao mesmo tempo, no entanto, eram combinados com medidas da institucionalidade, para convalidá-los”, explica.

O AI-5, por exemplo, fechou o Congresso Nacional — que permaneceu fechado até outubro do ano seguinte, para reabrir com a tarefa de produzir a Constituição do regime, adotando, por exemplo, a pena de morte.

A junta militar que assumiu o poder depois que Costa e Silva teve um AVC editou a emenda constitucional n° 1 de 1969, que validou o AI-5 e deu vigência de 10 anos a ele. “Há uma circularidade entre eles, para que ambos sejam instrumentos do arbítrio, de regulação da exceção”, comenta Paixão.

O AI-5 só foi extinto em 13 de outubro de 1978. A emenda entrou em vigor apenas em 1° de janeiro de 1979, como parte da chamada política de abertura. Foram mais de 11 anos de suspensão de direitos democráticos, sob a rubrica de um Estado de exceção.

No entendimento de Arnaldo Godoy, livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Estados Unidos) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Alemanha), o estado de exceção identifica um período de anormalidade constitucional.

“É um período que se pretende recorrentemente regrar, limitar e nomear, com objetivos de normalização, em termos constitucionais e, no limite, também com balizas legais e regulamentares. Essa anormalidade na conjuntura de uma pretensa normalidade é a característica mais marcante do estado de exceção, que consiste também em permanente problema para a teoria do direito público”, avalia.

O Ato Institucional nº 5 invocava a perturbação da ordem como necessidade de adoção de medidas para que fossem frustrados “os ideais superiores da Revolução, preservando a ordem, a segurança, a tranquilidade, o desenvolvimento econômico e cultural e a harmonia política e social do País comprometidos por processos subversivos e de guerra revolucionária”.

“Trata-se de argumento típico e recorrente nessas situações: suspende-se a ordem democrática, em nome da liberdade e da tranquilidade, justificando-se a medida como necessária e imperativa para a manutenção da liberdade, da tranquilidade e dos valores da democracia, não obstante então violada e suprimida. O Brasil viveu em seguida um tempo de extrema violência institucional”, disse Godoy.

No mesmo ano dos 50 anos do AI-5, a Constituição Federal fez 30 anos em outubro. Ela é, de acordo com Cristiano Paixão, uma grande reação àquele ato. “Ela rompeu com o regime, reconhecendo que eram medidas de exceção que vigoraram. O artigo 8° dá o direito de reparação a quem sofreu atos de exceção, negativa de direitos. É uma data para lembrar que a Constituição deve ser respeitada inclusive em situações em que possa incomodar. Ela está aí para representar limites a pretensões abusivas de poder.”

Leia aqui o Ato Institucional n° 5.

Fonte: Consultor Jurídico – Conjur

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