21 anos da regulação dos planos de saúde e a insegurança jurídica

regulação dos planos de saúdeNo último dia 3, comemorou-se os 21 anos da Lei 9.656/1998, que disciplina os planos privados de assistência à saúde, mais conhecidos como planos de saúde. Essa lei é resultado de um processo de construção de um conjunto de direitos do cidadão/consumidor, cujas raízes estão na Constituição de 1988, e os fundamentos, inscritos no Código de Defesa do Consumidor, lei de cunho geral e principiológico.

O mercado de saúde suplementar é regulado e fiscalizado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), vinculada ao Ministério da Saúde.

Não há dúvida de que nestes anos muitos avanços foram alcançados, mas como o Direito, tal qual os movimentos da sociedade, é dinâmico, ainda se observam pontos de dissonância, especialmente em relação à proteção do consumidor estruturada no Código de Defesa do Consumidor, que acabam sendo dirimidos pelo Poder Judiciário.

O atual cenário da judicialização da saúde é desanimador. Recentemente, foi divulgada uma pesquisa[1], encomendada pelo Conselho Nacional de Justiça ao Instituto de Ensino e Pesquisa – Insper, sobre o direito à saúde em primeira instância, apontando um crescimento de aproximadamente 130% nas demandas entre 2008 e 2017, e em segunda instância, um aumento de 85%, entre 2009 e 2017. Cabe destacar que, no mesmo período, a quantidade de ações sem distinção de tema subiu 50%.

No que tange à saúde privada, em primeira instância, 51,4% das demandas se referem a planos de saúde, sendo que a Justiça estadual de São Paulo é uma das responsáveis por esse grande número de processos[2], e o restante sobre saúde pública, seguidos de fornecimento de medicamentos ou de tratamento médico-hospitalar. Apenas 4,48% das ações judiciais foram consideradas improcedentes na primeira instância, e em 75% dos casos os juízes deram ganho de causa aos pacientes.

Além do Judiciário, a sociedade busca a satisfação de seus direitos lesados no âmbito administrativo, por meio dos Procons e das agências reguladoras. Segundo dados do Sindec/MJ[3], em 2018, o assunto referente aos planos de saúde representa 1,3% das reclamações recebidas pelos Procons. A ANS, por sua vez, também recebe inúmeras reclamações de consumidores que não são atendidos adequadamente por suas operadoras.

Entendemos que a insegurança jurídica que permeia o setor de saúde suplementar é um dos fatores preponderantes que ocasiona a judicialização da saúde suplementar. Isso se dá porque se trata de um tema complexo, onde a solução dos problemas não está clara nas regras vigentes e, também, por ser uma relação de consumo diferenciada, porque afeta um bem constitucionalmente indisponível que é a vida. Outro ponto é que a prestação da saúde envolve questões que têm impacto econômico e social. Dessa forma, os conflitos, em vez de serem solucionados, perpetuam-se.

A jurisprudência referente aos planos de saúde também não é pacífica: ora as decisões observam os contratos de planos de saúde à luz dos ditames do CDC e do marco regulatório, ora se pautam somente de acordo com as regras regulatórias da saúde suplementar.

As demandas, tanto do Executivo como do Judiciário, sobre a saúde suplementar dizem respeito a negativas de coberturas, descumprimento de contratos, reajustes e diferença regulatória entre planos individuais/familiares e coletivos. Muitas se referem a problemas pontuais, da Lei dos Planos de Saúde e de sua regulamentação, que não se compatibilizam com os princípios que norteiam os comandos do Código de Defesa do Consumidor.

Diante desse cenário que permeia o conflito, urge buscar soluções imediatas para reduzir as demandas judiciais sobre saúde. O ideal é que as soluções para esses conflitos sejam dirimidas no que couber no âmbito do Poder Legislativo e do Poder Executivo, como também pelas operadoras de planos de assistência à saúde e pelos fornecedores de serviços de saúde, de forma adequada e consensual, pautadas na ética e levando em conta a confiança que somente se conquista com respeito, transparência, boa-fé e legalidade.

A judicialização não é a alternativa mais adequada para a garantia dos direitos à saúde dos consumidores. É necessário buscar meios alternativos para a redução dos conflitos.

Como resolver esse impasse? Quais são os desafios que podem contribuir para a desjudicialização da saúde suplementar?

Entende-se que um desses problemas refere-se às falhas na regulação da saúde suplementar, que precisa ser aperfeiçoada para harmonizar as relações entre as operadoras de planos de assistência à saúde e seus consumidores. Pois o que se quer para a regulação é que o foco da atenção esteja centrado no consumidor e voltado para a produção de saúde.

Para tanto, é primordial invocar a sustentabilidade com uma visão holística, na busca do equilíbrio de um desenvolvimento economicamente viável, socialmente justo e ambientalmente correto. O que significa dizer, em outras palavras, com operadoras devidamente remuneradas, prestadores de serviços qualificados, consumidores adequadamente atendidos e o meio ambiente equilibrado, visando a excelência assistencial da saúde.

Em questões ligadas à saúde, o consumidor deve ser considerado pelo fornecedor como paciente, parceiro e aliado, jamais pode ser tratado como adversário, inclusive por ser ele fonte de recursos para a empresa, como também para a economia como um todo.

A prestação da atenção à saúde deve ser humanizada, pois o material com que os fornecedores trabalham é o humano, a pessoa, que deve ter respeitada sua dignidade. O paciente, consumidor, nessas circunstâncias, está fragilizado, pelo que necessita de um tratamento diferenciado.

Outro aspecto essencial é a informação, que deve ser a mais clara e transparente possível, pois nessa sociedade pós-moderna é prioritário a necessidade de manter o diálogo aberto entre todos os atores envolvidos, o que dá a importância da ampliação do debate. O diálogo é a principal ferramenta para a construção de práticas jurídicas e sociais adequadas e responsáveis, levando em conta os valores e os princípios éticos. Pois o diálogo deve ser a base de sustentação do equilíbrio da relação de consumo.

É necessário que esse debate se amplie no intuito de aperfeiçoar o sistema, resolvendo as incompatibilidades legais existentes à luz da lei consumerista. É fundamental que essa discussão seja levada ao Congresso Nacional para aperfeiçoar o marco regulatório, sem que haja retrocessos no que já se avançou.

Outra medida importante como mecanismo da redução de conflitos é a criação de varas e câmaras cíveis especializadas em saúde, onde os juízes devem ter capacitação e formação em saúde. Deve-se também investir nas formas alternativas consensuais, como mediação e conciliação.

Na tentativa de obter soluções para reduzir a judicialização da saúde, algumas iniciativas começam a despontar, tais como os Núcleos de Apoio Técnico e de Mediação (NATs)[4], e.NAT-jus[5] e o consumidor.gov.br[6].

Outro tema que merece ser incorporado ao marco legal é a tipificação dos crimes contra fraudes e desvios de recursos na saúde.

Para que os desafios propostos sejam alcançados, faz-se, urgente, a ampliação do debate, com a participação e o envolvimento de todos os atores desse setor. É imprescindível que esse debate se amplie, imediatamente, no intuito da consolidação de um mercado de saúde responsável, transparente, ético e justo, para a efetiva construção de um setor virtuoso, com ganhos positivos, em que todos os agentes possam se beneficiar, buscando o tão almejado equilíbrio econômico, social e ambiental.

Portanto, faz-se urgente uma agenda comum positiva para a sociedade deixar de ser conflituosa e ser mais cordial.


[1] Durante a III Jornada da Saúde, realizada em 18 de março, no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça – CNJ – Relatório Analítico Propositivo Justiça – Pesquisa Judicialização da Saúde no Brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução, Brasília, 2019.
[2] São Paulo conta com 82% dos processos sobre planos de saúde.
[3] www.justica.gov.br/consumidor/sindec. Acesso em 3/6/2019.
[4] Celebração de convênios, composto de médicos e farmacêuticos indicados pelos comitês executivos estaduais, que objetivam disponibilizar apoio técnico para auxiliar juízes em suas decisões.
[5] Cadastro de pareceres, notas e informações técnicas que objetivam disponibilizar apoio técnico para auxiliar juízes em suas decisões.
[6] A plataforma consumidor.gov.br é um serviço público, por meio da internet, que permite a interlocução direta entre consumidores e empresas, que aderiram formalmente ao serviço, monitorada pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon).

 é advogada do Gregori Sociedade de Advogados, professora de Direito do Consumidor da PUC-SP, diretora do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon) e ex-diretora da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Fonte: Consultor Jurídico – Conjur

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